sábado, 19 de julho de 2008

Do tipo penal de incitação no Código Penal Militar: uma análise clássica de suas elementares

O art. 155 do Código Penal Militar prescreve que é crime incitar à desobediência, à indisciplina ou à prática de crime militar, sujeitando o autor do delito à pena de reclusão, de dois a quatro anos.

Assim, também incorre no crime de incitamento aquele que introduz, afixa ou distribui, em lugar sujeito à administração militar, impressos, manuscritos ou material mimeografado, fotocopiado ou gravado, em que se contenha incitamento à prática dos atos previstos no art. 155 do Código Penal Militar.

Todavia, antes de nos manifestarmos sobre o conteúdo normativo do art. 155 do CPM, devemos voltar à parte geral do Código Penal Militar e estudarmos o art. 9º, que agrega elementares ao art. 155, pois se refere aos crimes militares em tempo de paz.

As prescrições normativas contidas no art. 9º do CPM são as seguintes:

"Art. 9º Consideram-se crimes militares, em tempo de paz:
I - os crimes de que trata este Código, quando definidos de modo diverso na lei penal comum, ou nela não previstos, qualquer que seja o agente, salvo disposição especial;
II - os crimes previstos neste Código, embora também o sejam com igual definição na lei penal comum, quando praticados:
a) por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma situação ou assemelhado;
b) por militar em situação de atividade ou assemelhado, em lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;
c) por militar em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza militar, ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar contra militar da reserva, ou reformado, ou civil; (Redação dada pela Lei nº 9.299, de 8.8.1996)
d) por militar durante o período de manobras ou exercício, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil;
e) por militar em situação de atividade, ou assemelhado, contra o patrimônio sob a administração militar, ou a ordem administrativa militar;
f) revogada. (Vide Lei nº 9.299, de 8.8.1996)
III - os crimes praticados por militar da reserva, ou reformado, ou por civil, contra as instituições militares, considerando-se como tais não só os compreendidos no inciso I, como os do inciso II, nos seguintes casos:
a) contra o patrimônio sob a administração militar, ou contra a ordem administrativa militar;
b) em lugar sujeito à administração militar contra militar em situação de atividade ou assemelhado, ou contra funcionário de Ministério militar ou da Justiça Militar, no exercício de função inerente ao seu cargo;
c) contra militar em formatura, ou durante o período de prontidão, vigilância, observação, exploração, exercício, acampamento, acantonamento ou manobras;
d) ainda que fora do lugar sujeito à administração militar, contra militar em função de natureza militar, ou no desempenho de serviço de vigilância, garantia e preservação da ordem pública, administrativa ou judiciária, quando legalmente requisitado para aquele fim, ou em obediência a determinação legal superior."

Da análise do dispositivo supracitado, podemos extrair três idéias básicas: a) são crimes militares em tempo de paz os previstos exclusivamente no Código Penal Militar, que podem ser cometidos por quaisquer pessoas; b) são crimes militares em tempo de paz os previstos na lei penal comum, desde que o sujeito ativo do delito seja militar; e c) são crimes militares em tempo de paz os cometidos contra as instituições militares, por quaisquer pessoas, sendo tipos exclusivos ou não do CPM.

O crime de incitação, como bem destaca o professor Jorge Cesar de Assis, é figura penal com igual definição no Código Penal comum, in verbis: “No CP comum é prevista a figura do crime de incitação ao crime, em seu art. 286.”(ASSIS, Jorge Cesar de. Comentários ao Código Penal Militar. Juruá: Curitiba, 2007, p. 322.)

Assim, por ter o crime de incitação similar na legislação penal comum, somos remetidos ao inciso II do art. 9º, isto é, estamos diante de um crime que só pode ser cometido por militar. Essa constatação é bem lógico, pois se o delito penal militar tem similar na lei penal comum, significa que o civil que o praticar responderá pela lei ordinária penal e não pela militar.

Portanto, para fins de lei penal militar, somente estão inseridos na condição de militar, segundo as alíneas do inciso II do art. 9º do CPM: aqueles em situação de atividade ou assemelhado; em serviço ou atuando em razão da função, em comissão de natureza militar, ou em formatura; ou durante o período de manobras ou exercício.

Assim, qualquer sujeito que não se amolde a esse estado de militar não poderá cometer, em tempo de paz, o crime militar de incitação, e com isso encontramos a primeira elementar do tipo: o sujeito ativo do crime.

Todavia, há outras elementares que envolvem a concretização do tipo de incitação, em tempo de paz, dentre as quais devemos destacar: as de que o crime seja cometido contra militar na mesma situação ou assemelhado; ou em lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil; ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar contra militar da reserva, ou reformado, ou civil; contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil; ou contra o patrimônio sob a administração militar, ou a ordem administrativa militar. Com isso, temos as elementares passivas do delito de incitação.

Desta forma, temos que o tipo penal da incitação do art. 155 do CPM possui a seguinte norma penal: é vedado ao militar em situação de atividade ou assemelhado, em tempo de paz, dolosamente incitar à indisciplinar, à desobediência ou à prática de crime militar, contra militar na mesma situação ou assemelhado; ou em lugar sujeito à administração militar, contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil; ou em formatura, ainda que fora do lugar sujeito à administração militar contra militar da reserva, ou reformado, ou civil; contra militar da reserva, ou reformado, ou assemelhado, ou civil; ou contra o patrimônio sob a administração militar, ou a ordem administrativa militar, colegas militares.

É imperioso observamos que o crime de incitação tem por finalidade o aliciamento de colegas militares para a prática de crimes militares, o que nos leva a mais uma elementar do tipo: o dolo. O tipo do incitamento é doloso e não admite a modalidade culposa.

Desta forma, chegamos à conclusão de que compõem o núcleo do suporte fático do crime de incitação à indisciplina três elementos: o militar em situação de atividade ou assemelhado, o dolo de incitar outros militares e a prática da conduta em lugar sujeito à administração militar ou contra militar. Portanto, na falta de um desses elementos, o crime é inexistente, consoante já decidiu o STM, in verbis:

“Ementa: Rejeição de denúncia. Incitamento. Atipicidade. A publicação de queixas, denúncias e críticas a oficial superior em site da internet do denunciado, não importando a veracidade dessas, fere os pilares das Forças Armadas: hierarquia e disciplina. Porém, não tipifica o delito de incitamento, previsto no art. 155, do caput, do CPM, pelo qual foi denunciado. Despacho do Juízo a quo, rejeitando a denúncia, por ausência de tipicidade, encontra-se correto. Recurso do MPM improvido. Decisão Unânime. (STM – Rec. Crim. 2004.01.007177-1-CE – Rel. Min. José Luiz Lopes da Silva – J. Em 02.09.2004 – DJU 18.10.2004)”

Observemos que o entendimento do Superior Tribunal Militar, quanto à atipicidade é bem claro, pois compreendeu que o site da internet não é lugar sujeito à administração militar e que não houve o dolo de incitar colegas militares à indisciplina ou à prática de crimes militares, e por isso é atípico o fato, mesmo que tenha havido ferimento a pilares das Forças Armadas.

Temos de destacar, porém, que o crime de incitação não é material, e sim formal, não exigindo para a sua concretização o resultado naturalístico.

Toda a nossa explanação acima foi calcada numa visão clássica da teoria do crime, onde examinamos a conduta de um agente, o nexo causal, o resultado formal e a tipicidade.

Entretanto, ponho a questionamento do leitor se seria possível a aplicação da teoria da imputação objetiva a este tipo penal.

Mandado de Segurança versus Juizados Especiais Cíveis: uma revisão teórica da prática

Este artigo cuida do polêmico tema do Mandado de Segurança em Juizados Especiais Estaduais, especialmente no Estado de Alagoas. Nele tratamos de pontos teóricos estruturais da ação de Mandado de Segurança e dos Juizados Especiais Estaduais para, então, propormos uma revisão teórica da prática no Estado de Alagoas, demonstrando os equívocos decorrentes do uso do Mandado de Segurança para a impugnação das decisões interlocutórias dos Juízes dos Juizados na turma recursal. O problema em si não está na admissibilidade do Mandado de Segurança para tal finalidade, mas no porquê se o utiliza. Não deveria ser ele utilizado, mas já que o é, necessária será a sua formalização de forma correta e constitucionalmente adequada, sob pena de gerar decisões fortuitas e arbitrárias, retirando densidade mandamental da Constituição.

Uma revisão sobre a competência processual

Ao estudarmos a competência notamos, quando da sua conceituação, que a maioria da doutrina a define a partir da jurisdição, assentando que a competência seria o limite da jurisdição. Todavia, tal conceituação, não se mostra satisfatória, pois competência e jurisdição não se inserem numa relação de causa e efeito. Não é a competência efeito da jurisdição e nem esta é limitada por aquela.

A jurisdição, como poder estatal intimamente ligado à soberania, sempre que exercida por um órgão judicial é exercitada de forma plena e ilimitada. O poder de dizer o direito no caso concreto é capaz de produzir efeitos modificadores da vida das pessoas como conseqüência do poder estatal de interferir na vida de seus membros. Só para que tenhamos uma idéia disso, quando o juiz da Vara de Família de um Estado declara o divórcio de alguém, alterando o estado do sujeito, essa alteração valerá em qualquer lugar do mundo, pois decorrente da jurisdição.

Logo, não é a jurisdição limitada pela competência. Em verdade, a competência limita a a atuação do órgão julgador (Juízo). Temos que distinguir dois elementos: capacidade do órgão julgador e legitimidade do agente julgador. A competência, portanto, cuida da capacidade de agir do órgão, e as normas administrativas da legitimidade do agente julgador. Não por outra razão a jurisprudência tem admitido efeitos de sentenças proferidas por autoridades ilegítimas que beneficiam o réu, por exemplo. A jurisdição, repetimos, não sofre limite, e sim o órgão do judiciário. Portanto, a competência não limita a jurisdição em sua ontologia.

Por isso, entendemos que o conceito clássico de competência precisa ser revisto, principalmente porque há uma confusão entre os fenômenos jurídicos da jurisdição e da competência, cumprindo trazer à baila o ensinamento do professor Sérgio Ricardo Arruda Fernandes:

"A Jurisdição do Estado é una e indivisível, como reflexo de sua própria soberania. Isto não quer dizer, todavia, que o seu exercício esteja concentrado em apenas um único órgão judicial. Ao revés, para que a atividade jurisdicional seja bem prestada, impõe-se a atuação de vários órgãos judiciais espalhados pelo país. O exercício dessa atividade pelos inúmeros órgãos judiciais não é feito de forma aleatória. Para o êxito da prestação jurisdicional, os órgãos são distribuídos de forma organizada (daí o nome órgão judicial), repartindo-se a parcela do exercício do poder judicante com base em critérios previstos no ordenamento jurídico."(FERNANDES, Sérgio Ricardo Arruda. Questões Importantes de Processo Civil – Teoria Geral do Processo, Ed.: DP&A: Rio de Janeiro, 1999. Pág. 44.) (grifamos)

Alguns doutrinadores, a exemplo de Humberto Theodoro Júnior e Arruda Alvim, buscaram livrar o conceito de competência dessa atrelação à jurisdição, porém, apesar da audácia de reverem o conceito, acabaram por conceituá-la pelo seu critério de determinação, isto é, pelo seu modus faciendi, conforme demonstra Eduardo Arruda Alvim em seu curso de processo civil:

“Arruda Alvim define competência como ‘a atribuição a um dado órgão do Poder Judiciário daquilo que lhe está afeto, em decorrência de sua atividade jurisdicional específica, dentro do Poder Judiciário, normalmente excluída a legitimidade simultânea de qualquer outro órgão do mesmo poder’. Para Humberto Theodoro Júnior, ‘a competência é justamente o critério de distribuir entre os vários órgão jurisdiciários as atribuições relativas ao desempenho da jurisdição’.” ( ALVIM, Eduardo Arruda. Curso de Processo Civil, ed. 1ª, 2ª tir. Ed. Revista dos Tribunais: São Paulo – 2000. Pág. 89.)(grifamos)

James Goldshmidt, porém, ao cuidar da competência ilumina o caminho a ser seguido no trato da matéria, especificando que a competência é delimitada por condições objetivas, como bem podemos compreender do trecho abaixo:

“A competência delimita-se, por uma parte, atendendo à condição objetiva dos assuntos cíveis que sejam debatidos. A delimitação desta competência objetiva resulta da atribuição das distintas classes de processos a Tribunais de diferentes classes e hierarquias. A competência objetiva traduz-se, pois, num problema de separação de atribuições entre Tribunais hierarquicamente organizados de categoria distinta.” (GOLDSCHMIDT, James. Direito Processual Civil, pág. 202) (grifos nosso)

Entretanto, ao delimitar a competência por sua condição objetiva, ou seja, a limitação de órgãos jurisdicionais diferentes para o conhecimento de determinadas causas cíveis, o mestre citado acaba, apesar do valor que tem o seu conceito, por definir o fenômeno por fatores externos e não pela sua essência. Tal falha não é incomum na doutrina, são inúmeros os doutrinadores que conceituam a competência pela sua limitação. Assim, na mesma linha, Athos Gusmão Carneiro:

“Todos os juízes exercem jurisdição, mas a exercem numa certa medida, dentro de certo limites. São, pois ‘competentes’ somente para processar e julgar determinadas causas. A ‘competência’, assim, é ‘a medida da jurisdição’, ou, ainda, é a jurisdição na medida em que pode e deve ser exercida pelo juiz.”(CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e Competência. Pág. 55)

Mas, então, o que seria a competência, uma vez que ela não se confunde nem com a jurisdição e nem com os limites objetivos de sua especificação? A jurisdição é o poder, os limites objetivos são os critérios de identificação do órgão competente, mas nenhum deles é a competência. A competência, para nós, é justamente o que fica da incidência das normas objetivas de identificação para o exercício do poder. A competência é, portanto, efeito jurídico de normas jurídicas que especificam, no caso concreto, a atuação de um órgão judicial.

Assim, a competência é um dever-poder já conformado e hierarquizado por normas jurídicas – não a recebe o órgão julgador como imediaticidade indeterminada, muito pelo contrário –, de modo que o seu agir é sempre vinculado a ditames Constitucionais e legais.