sábado, 19 de julho de 2008

Uma revisão sobre a competência processual

Ao estudarmos a competência notamos, quando da sua conceituação, que a maioria da doutrina a define a partir da jurisdição, assentando que a competência seria o limite da jurisdição. Todavia, tal conceituação, não se mostra satisfatória, pois competência e jurisdição não se inserem numa relação de causa e efeito. Não é a competência efeito da jurisdição e nem esta é limitada por aquela.

A jurisdição, como poder estatal intimamente ligado à soberania, sempre que exercida por um órgão judicial é exercitada de forma plena e ilimitada. O poder de dizer o direito no caso concreto é capaz de produzir efeitos modificadores da vida das pessoas como conseqüência do poder estatal de interferir na vida de seus membros. Só para que tenhamos uma idéia disso, quando o juiz da Vara de Família de um Estado declara o divórcio de alguém, alterando o estado do sujeito, essa alteração valerá em qualquer lugar do mundo, pois decorrente da jurisdição.

Logo, não é a jurisdição limitada pela competência. Em verdade, a competência limita a a atuação do órgão julgador (Juízo). Temos que distinguir dois elementos: capacidade do órgão julgador e legitimidade do agente julgador. A competência, portanto, cuida da capacidade de agir do órgão, e as normas administrativas da legitimidade do agente julgador. Não por outra razão a jurisprudência tem admitido efeitos de sentenças proferidas por autoridades ilegítimas que beneficiam o réu, por exemplo. A jurisdição, repetimos, não sofre limite, e sim o órgão do judiciário. Portanto, a competência não limita a jurisdição em sua ontologia.

Por isso, entendemos que o conceito clássico de competência precisa ser revisto, principalmente porque há uma confusão entre os fenômenos jurídicos da jurisdição e da competência, cumprindo trazer à baila o ensinamento do professor Sérgio Ricardo Arruda Fernandes:

"A Jurisdição do Estado é una e indivisível, como reflexo de sua própria soberania. Isto não quer dizer, todavia, que o seu exercício esteja concentrado em apenas um único órgão judicial. Ao revés, para que a atividade jurisdicional seja bem prestada, impõe-se a atuação de vários órgãos judiciais espalhados pelo país. O exercício dessa atividade pelos inúmeros órgãos judiciais não é feito de forma aleatória. Para o êxito da prestação jurisdicional, os órgãos são distribuídos de forma organizada (daí o nome órgão judicial), repartindo-se a parcela do exercício do poder judicante com base em critérios previstos no ordenamento jurídico."(FERNANDES, Sérgio Ricardo Arruda. Questões Importantes de Processo Civil – Teoria Geral do Processo, Ed.: DP&A: Rio de Janeiro, 1999. Pág. 44.) (grifamos)

Alguns doutrinadores, a exemplo de Humberto Theodoro Júnior e Arruda Alvim, buscaram livrar o conceito de competência dessa atrelação à jurisdição, porém, apesar da audácia de reverem o conceito, acabaram por conceituá-la pelo seu critério de determinação, isto é, pelo seu modus faciendi, conforme demonstra Eduardo Arruda Alvim em seu curso de processo civil:

“Arruda Alvim define competência como ‘a atribuição a um dado órgão do Poder Judiciário daquilo que lhe está afeto, em decorrência de sua atividade jurisdicional específica, dentro do Poder Judiciário, normalmente excluída a legitimidade simultânea de qualquer outro órgão do mesmo poder’. Para Humberto Theodoro Júnior, ‘a competência é justamente o critério de distribuir entre os vários órgão jurisdiciários as atribuições relativas ao desempenho da jurisdição’.” ( ALVIM, Eduardo Arruda. Curso de Processo Civil, ed. 1ª, 2ª tir. Ed. Revista dos Tribunais: São Paulo – 2000. Pág. 89.)(grifamos)

James Goldshmidt, porém, ao cuidar da competência ilumina o caminho a ser seguido no trato da matéria, especificando que a competência é delimitada por condições objetivas, como bem podemos compreender do trecho abaixo:

“A competência delimita-se, por uma parte, atendendo à condição objetiva dos assuntos cíveis que sejam debatidos. A delimitação desta competência objetiva resulta da atribuição das distintas classes de processos a Tribunais de diferentes classes e hierarquias. A competência objetiva traduz-se, pois, num problema de separação de atribuições entre Tribunais hierarquicamente organizados de categoria distinta.” (GOLDSCHMIDT, James. Direito Processual Civil, pág. 202) (grifos nosso)

Entretanto, ao delimitar a competência por sua condição objetiva, ou seja, a limitação de órgãos jurisdicionais diferentes para o conhecimento de determinadas causas cíveis, o mestre citado acaba, apesar do valor que tem o seu conceito, por definir o fenômeno por fatores externos e não pela sua essência. Tal falha não é incomum na doutrina, são inúmeros os doutrinadores que conceituam a competência pela sua limitação. Assim, na mesma linha, Athos Gusmão Carneiro:

“Todos os juízes exercem jurisdição, mas a exercem numa certa medida, dentro de certo limites. São, pois ‘competentes’ somente para processar e julgar determinadas causas. A ‘competência’, assim, é ‘a medida da jurisdição’, ou, ainda, é a jurisdição na medida em que pode e deve ser exercida pelo juiz.”(CARNEIRO, Athos Gusmão. Jurisdição e Competência. Pág. 55)

Mas, então, o que seria a competência, uma vez que ela não se confunde nem com a jurisdição e nem com os limites objetivos de sua especificação? A jurisdição é o poder, os limites objetivos são os critérios de identificação do órgão competente, mas nenhum deles é a competência. A competência, para nós, é justamente o que fica da incidência das normas objetivas de identificação para o exercício do poder. A competência é, portanto, efeito jurídico de normas jurídicas que especificam, no caso concreto, a atuação de um órgão judicial.

Assim, a competência é um dever-poder já conformado e hierarquizado por normas jurídicas – não a recebe o órgão julgador como imediaticidade indeterminada, muito pelo contrário –, de modo que o seu agir é sempre vinculado a ditames Constitucionais e legais.

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